domingo, 1 de março de 2015

Dionísio e o abismo interior.

 
Fonte: Revista Vida Simples -Março 2015, baseado no texto de José Francisco Botelho.

   Dionísio meio irmão de Apolo, filho de Zeus com uma mortal. Deus do vinho que rodou meio mundo e ensinando aos homens os prazeres da embriaguez. Um mito que fala sobre escapar dos limites impostos por nós mesmos, contemplando nossas dificuldades sem o desespero, que a final faz parte do jogo da vida.
   Assim como Apolo, sua concepção foi através de uma pulada de cerca do todo poderoso Zeus com uma mortal, Sêmele, princesa de Tebas. E como de costume, Hera, a eterna esposa corneada e ciumenta, logo tratou de dar um fim na atual amante do seu infiel marido: mandou a alma da jovem Sêmele para as profundezas do Hades, reino subterrâneo onde os mortos passavam a eternidade.
Zeus conseguiu salvar o menino das garras de Hera entregando o bebê para Hermes, o malandro mensageiro do Olimpo que acobertava todas as escapadas do poderoso dos deuses olímpicos.
  Hermes entregou a criança nas mãos das Nisíades,ninfas solitárias e bondosas que aceitaram a cuidar do pequeno Dionísio. Elas habitavam as encostas do Monte Nisa ( por isso o nome Nisíadas) um lugar remoto e selvagem.
  Dionísio cresceu livre pelos bosques, dizem que se vestia de menina para escapar da fúria de Hera. O deus logo ganhou a admiração de sua avó Reia, uma antiga deusa e muito sábia que profetizou que o jovem Dionísio teria seu lugar ao Olimpo mas seria através de meios obscuros. E por isso entregou-lhe uma ametista. Depois de certo tempo, o rapaz começou entender a função daquele precioso amuleto.
  Aquilo ficou na cabeça do jovem deus que se sentia um príncipe renegado. Como ser um deus do Olimpo já que outras divindades já haviam ensinado vários ofícios ao homens? O que ele poderia oferecer?  Dionísio sentia uma certa inveja de Apolo já que este último ainda moço contava com templos e altares em todas as cidades gregas, celebravam como patrono de tudo que é belo, ordenado e harmonioso e além do mais era o queridinho de Zeus. 
  Num misto de raiva e superação, Dionísio se transformou no oposto de Apolo. Enquanto o luminoso Apolo andava cercado de elegantes divindades das artes e das ciências denominadas Musas, Dionísio se juntou a um bando de de sátiros- seres que habitavam os bosques metade homem e metade bode, preguiçosos e fanfarrões. 
 Num belo dia, junto com seus amigos esquisitos, Dionísio avistou uma trepadeira cheia de frutos roxos, uma serpente sugava os cachos. Ao fugir para bem longe, o réptil rastejava em ziguezagues  mais tortos que o costume. Foi aí que o rapaz teve uma súbita intuição.
  Com um objeto perfurante, fez um buraco no chão e começou a enchê-lo com as frutinhas recém - descobertas . Chamou os sátiros para ajudar a pisotear a primeira vidinha que se tem conhecimento. Precisou de apenas uma tarde para se ter um bom vinho e naquela noite ele e seus amigos encheram os longos chifres de carneiro que carregaram e trataram de entornar a bebida recém- inventada. Logo Dionísio compreendeu a função do amuleto dado por sua avó: na antiguidade, acreditava-se que a ametista anulava os efeitos do álcool. Enquanto seus amigos se embriagavam, Dionísio continuava a beber sem sentir tontura alguma. 
    No poema Dionisícas, do século 4 a.C., o autor grego Nono de Panópolis descreve o início da primeira farra etílica do mundo, com detalhes bem picantes: " Dominados pela bebida enlouquecedora, um sátiro agarrou uma moça solteira pela cintura e, levantando seu vestido, acariciou suas coxas rosadas. Outro, segurando a tocha na mão esquerda, ergueu a direita para o seio intumecido de uma de uma donzela." Bem melhor que 50 tons de cinza.
    Na manhã seguinte o mundo havia mudado, Dionísio descobriu o poder da sua criação, tinha uma grande arma em suas mãos. Colocando na própria cabeça uma coroa de vinhas, ergueu um chifre aos céus e gritou: "Despejarei sobre o mundo rios de vinho e colocarei o prazer imediato no coração dos homens: até aqueles que lamentaram a perda de seu filho, de um pai ou de um amante poderão se livrar da dor por um momento, com alguns goles de minha porção. Admita, Apolo,eu o derrotei! Eu sou o maior dos deuses!"
    Depois disso, o deus saiu pelo mundo e ficou conhecido como o maior viajante da mitologia: da Península Ibérica até a Índia, todos passaram a adorá-lo. Sua popularidade era tão grande que nem Hera ousou ameaçá-lo. E assim Dionísio com seu jeito andrógino, coroado de uvas, segurando um chifre transbordante chegou à morada dos deuses sem ser impedido por nenhum deus. Apenas sendo fitado sério por seu irmão Apolo. 


A bebida metafísica:

    




O Vinho de Dionísio é uma metáfora para algo mais vasto e onipresente que os efeitos do álcool: o deus penetra do olimpo não apenas da embriaguez,mas de tudo aquilo que tira o ser humano às convenções de sua época e lugar ( há fontes que colocam as origens do carnaval nos cultos a Dionísio). Por isso os gregos o chamavam também de Eleutherios - o Libertador.
   Para o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, a existência humana é uma eterna oscilação entre dois polos que, embora opostos, são complementares: o apolíneo e o dionisíaco. Apolo é o responsável pela ordem: separa o humano da natureza e delineia as fronteiras que fazem cada um de nós indivíduos. Então vem Dionísio com seu sorriso fanfarrão e ergue por um instante o véu racional que encobre a verdadeira face do mundo - livres das convenções, percebemos que o mundo humanamente ordenado é uma miragem. A bênção de Dionísio é podermos contemplar nossa dissolução sem desespero, mas com uma espécie de alegria trágica: pois para Dionísio, a morte é parte da vida e não o contrário. O véu é novamente abaixado e segue a existência normal, os irmãos olímpicos seguem se encarando por uma mesa, numa trégua delicada. Enquanto os dois se observam, vamos vivendo. "O ser humano é uma corda", escreveu Nietzsche em Assim Falou Zaratustra, "uma corda estendida sobre o abismo"( O bêbado e a equilibrista). Apolo é a corda por onde vamos andando,
(a equilibrista); Dionísio é aquele estranho prazer que nos apunhala a olhar para abaixo, o abismo, 
(o bêbado). Dionísio nos permite entrar na nossa própria embriaguez e assim nos libertamos, temporariamente, dos limites impostos por nós mesmos.  



Um comentário:

  1. Muito bom o seu texto, Carmen! Gostei! Já cheguei a escrever um texto sobre isso. Será que poderíamos compartilhar os conhecimentos?

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